O autismo político da Fórmula 1

 Poucos minutos antes da largada nesse domingo, a Fórmula 1 fez uma manifestação antirracista, algo raro, visto que para Bernie Ecclestone, antigo chefão da categoria, ''esporte e política não se misturam''. Uma declaração claramente oportunista para justificar a presença da F1 em tantos governos autoritários ou ditatoriais.

F1: 14 pilotos se ajoelham em protesto pelo fim do racismo

 Comprada pelo Liberty Media em 2017, a F1 passou por um processo intenso de reformulação de imagem, tentando afastar a imagem elitista e retrógrada criada por Ecclestone e passou a promover a inclusão. Um exemplo disso é a nova campanha #WeRaceAsOne. A W Series, categoria composta apenas por mulheres é outro exemplo. E Lewis Hamilton, único negro no grid, que passou a ter voz e se tornou no maior ativista em defesa das minorias.

 No entanto, ontem seis pilotos se recusaram a se ajoelhar pelo fim do racismo. Foram eles: Charles Leclerc, Max Verstappen, Carlos Sainz, Daniil Kvyat, Antonio Giovinazzi e Kimi Räikkönen. O motivo? Cada um apresentou os seus, enquanto outros nem se justificaram. Leclerc e Verstappen avisaram que não iriam participar da manifestação , porém deixaram claro que não são racistas (que bom!). O resto nem se justificou. Países como Rússia e Itália, de Kvyat e Giovinazzi, não são os maiores exemplos de combate ao racismo no mundo (não estou generalizando, mas ambos são conhecidos por serem bem difícil para negros ou qualquer outra minoria). Räikkönen, que nunca está ligando pra nada, não deve nem saber o que é racismo. E Sainz, sinceramente, sei lá, deve ser ou pelos motivos de Leclerc e Verstappen ou deve achar tudo isso bobeira e que ''brancos também sofrem racismo''.

Lewis Hamilton attends Black Lives Matter protest at Hyde Park and ...
Hamilton, o único ativista na F1.
“Estou muito comprometido com a igualdade e o anti-racismo. Mas acho que todos têm o direito de se expressar no momento e da maneira que lhes convier. Não vou aguentar a corrida hoje, mas vou respeitar e apoiar as escolhas pessoais feitas por cada piloto”. - Charles Leclerc.

 Mas o que há de tão controverso em apenas se ajoelhar a favor de um movimento tão necessário? Ricciardo, que se ajoelhou, justificou que o gesto pode ser visto como controverso em alguns países. Nos Estados Unidos, se ajoelhar virou um gesto não apenas antirracista, mas também anti-Trump. Em 2017, muitos jogadores da NFL se ajoelhavam durante a execução do hino estadunidense, como um protesto contra a violência policial sobre negros. O ato irritou o presidente norte-americano, que considerava tudo aquilo um ''desrespeito'' a bandeira nacional. Desde então, diversas celebridades passaram a aderir ao movimento como forma de protesto a Donald Trump. Pode ter sido esse o motivo para os seis terem se recusado a participar do ato? Talvez. Justifica se recusarem a participar de um ato antirracista? Pra mim, não.

 Uma das mais recentes declarações de Ecclestone foi na CNN, ao dizer que ''negros são mais racistas que brancos''. Além disso já disse que ''as mulheres deveriam se vestir de branco, assim como todos os outros eletrodomésticos'' e já admirou Adolf Hitler. Seu braço-direito, o ex-presidente da FIA Max Mosley é filho do líder fascista Oswald Mosley e já foi fotografado fantasiado de nazista em uma orgia em Londres. Esse mesmo Bernie alega que ''política e esporte não se misturam''. Por isso que eu disse acima que a frase é oportunista: a intenção real é apenas calar aqueles que protestam contra a injustiça. Eu vou explicar.
RIP Mandela - Darkside
Nenhum piloto se incomodava em correr na
segregatória África do Sul nos anos 70.

 Bernie é um defensor autodeclarado de ditaduras, pois para o mesmo, ''democracia não funciona''. No início dos anos 90, enquanto o COI e a FIFA baniam a África do Sul de suas competições, a F1 estava lá, sob esse mesmo lema de ''política e esporte não se misturam'' acelerando em pleno Apartheid. No início dos anos 2000, Bernie cansou da Europa e resolveu abir as portas da F1 para países emergentes. Foi ai que vieram Malásia, Bahrein, Turquia, China, Singapura, Coréia do Sul, Índia, Abu Dhabi, Rússia, Azerbaijão e, pouco antes de sua saída, o Vietnã. Em 2011, a categoria máxima do automobilismo chegou a ter metade de suas corridas realizadas na Ásia. Basicamente eram todos a mesma coisa: dentro do autódromo era tudo uma maravilha, instalações de primeira linha, celebridades, hotéis de luxo... Mas fora do circuito, se tem um país problemático, com muita desigualdade e opressão.

Fórmula 1. GP do Bahrein e do Vietname adiados - Renascença
Enquanto os pilotos aceleravam no belíssimo autódromo em Sakhir, opositores
eram torturados ao lado do circuito em seu primeiro GP, em 2004.
 Vamos começar pelo Bahrein: um governo comandado por uma monarquia sunita que ignora a maioria xiita , sem liberdade alguma de expressão e que durante a Primavera Árabe, em 2011, muito disposto a conversar, pacificou os protestos contra o governo com tanques de guerra e gás lacrimogênio. Depois veio a China, país fechado e unipartidario, assim como o Vietnã, que fará sua corrida nesse ano (se não for cancelada). A Turquia, que chegou em 2005, que ainda mantém forte influência do islamismo na política, imprensa restrita, corrupção alta e minoria étnica reprimida. Cingapura, um país que mesmo sendo muito bonito, tem leis ultra-rigorosas e um governo bastante autoritário. Abu Dhabi, uma cidade que por fora é linda, porém com uma desigualdade extrema, com um povo pobre completamente esquecido, com um código islâmico seguido ao pé da letra e desrespeito aos direitos humanos. Além disso a Índia e seu sistema de castas, o Azerbaijão e seu governo ditatorial e a Rússia, comandada a mais de 20 anos por Vladimir Putin (ídolo número 1 de Bernie Ecclestone). Desses países, a maioria deles deixaram a F1 nos últimos anos, pois o público não comprou a ideia e os circuitos acabam virando elefantes brancos.

 Obviamente há uma intenção por trás desses países em sediar uma corrida de F1 com seus ultra-luxuosos autódromos desenhados por Hermann Tilke: passar uma outra imagem ao mundo. A imagem que são países desenvolvidos, bem estruturados e glamourosos, assim como o circo da F1. E com isso, estão dispostos a pagar uma quantia milionária a Ecclestone para poder trazer a F1 para seus problemáticos países. Assim, todos saem felizes: o país com sua propaganda e o chefão com seus cofres cheios.

Riot police officers stand near an anti-Formula One graffiti during an anti-government protest in the village of Diraz
'''Não corram sobre o nosso sangue'' manifestação anti-F1 em Manama
 Agora, voltando a pauta do racismo, aonde eu quero chegar após tudo isso? Simples. Se você é um dos que criticaram o ato feito pelos 14 pilotos antes do GP da Áustria e que xinga Lewis Hamilton por ser um defensor do meio ambiente e da causa animal, sob o argumento que esporte e política não se misturam, saiba que está usando a mesma desculpa usada pela F1 para correr em Kyalami nos anos 70/80/90. Esse autismo político do automobilismo fez com que, além da África do Sul, países como Bahrein, Azerbaijão e Rússia entrassem no calendário. E se não fosse Lewis Hamilton, faria com que a F1 mais uma vez ficasse calada diante dos casos de racismo no mundo. E termino dizendo: está na hora da categoria parar de se importar apenas com o que acontece dentro dos luxuosos circuitos e olhar para o que acontece fora deles também.

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