Uma segunda onda de nanicas. Por que não?

Ex-parceira de times nanicos entra em concurso para câmbio único da F1

Desde a saída da Manor, em 2016, a F1 conta com 20 carros no grid. Algo até normal, já que já tivemos esse número de carros anteriormente. Porém, agora, com a crise econômica causada pela pandemia, diversas equipes estão mal das pernas, com a Williams sendo o caso mais notório, além da McLaren que demitiu mais de 1200 funcionários, a Renault que pediu um empréstimo de 5 bilhões de euros ao governo francês e a Haas que até agora não decidiu se fica para o ano que vem.
  Mesmo com Ross Brawn dizendo que não estão interessados em aumentar o número de carros, duas equipes mostraram interesse em entrar no grid para 2022. A Panthera Team Asia, que tem esse nome de puteiro do Méier e é apoiada pelo banco russo SMP - que financia a carreira de diversos pilotos russos como Shwartzman, Mazepin, Sirotkin e Markelov - e a Campos, tradicional nas categorias de base e que todo ano tenta entrar na F1 e não consegue. O motivo para ambas terem vindo a público anunciar que querem entrar no mundial é simples: chamar a atenção de patrocinadores e investidores. Ambas dizem já terem um acordo com uma grande montadora, obviamente a Renault, que já se mostrou favorável ao aumento de equipes.
  Eu sou totalmente favorável a entrada das duas no grid por um simples motivo: a categoria precisa de uma renovação. Parece que estamos vendo a mesma coisa desde 2017. As equipes continuam quase as mesmas, o Hamilton continua ganhando e a ordem de forças teve leve mudanças, mas nada demais (não é a primeira vez que a Ferrari faz um carro ruim). Isso deixa o público saturado de ver sempre o mesmo ano após ano. Ficar adicionando regrinhas bestas como ponto extra pela volta mais rápida pouco acrescentam. É preciso uma mudança igual 2010, quando tivemos a chegada de novas equipes, a volta de Schumacher e da Mercedes, a saída das montadoras e o fim do reabastecimento, o que deu um fôlego totalmente novo a categoria.

  O problema é que a Liberty só quer projetos como o da Haas ou da Racing Point na F1, ou seja chefiadas por bilionários. Equipes de base que sempre estiveram ligadas com o automobilismo, como Prema, ART e DAMS seriam incapazes de participar. Sei que não estamos mais nos anos 70 quando para entrar na F1 era somente necessário comprar um motor Cosworth e um chassi meia-boca de qualquer equipe do grid. Mas isso não quer dizer que a categoria tenha que ser um clube fechado para bilionários, montadoras ou grandes empresas.
  Sinto falta de ver uma nanica no grid, daquelas que não sabem nem se terá dinheiro para continuar na próxima temporada e precisa recorrer a pilotos de talento questionável mas com alguns trocados que ajudam a equipe a sobreviver por mais alguns meses. Estilo Manor, Hispania e Minardi mesmo. Elas sempre tiveram muito a ensinar a categoria. Eram apedrejadas por muitos, mas poucos paravam para olhar a façanha que era conseguir estar no grid da F1 com um orçamento 90% menor que de uma montadora e sem nenhum apoio de um bilionário. Estavam lá porque eram apaixonados pelo automobilismo.

  Max Mosley deu um fim nos times independentes nos anos 90. Após as peripécias da Andrea Moda e outras equipes sem condições de estarem no grid, o recém-empossado presidente da FIA decidiu que montadoras era o futuro e declarou guerra as garagistas. Aumentou a taxa de inscrição para valores exorbitantes, não incluiu novatas nos direitos de transmissão e deu mais poderes as grandes Ferrari e McLaren. Em apenas quatro anos de mandato, Mosley conseguiu reduzir o grid de 32 para 22 carros. Nessa mesma época, nada menos que 10 montadoras chegaram ao grid, com os custos aumentando de uma forma absurda, batendo a casa dos bilhões de dólares gastos em apenas uma temporada. A Toyota, que gastava US$ 1,3 bi por temporada é o melhor exemplo disso.
  Essa putaria nos gastos durou até a crise de 2008, com a saída em massa das montadoras no final da década. E o mesmo Mosley que exterminou as garagistas anos antes voltou atrás e decidiu trazê-las de volta a F1. Abriu-se uma seletiva para novas equipes independentes e uma porrada de times se inscreveram. As três escolhidas foram a USF1 (uma tentativa de se aproximar do público americano), a Campos e a Manor. Com a saída da BMW, a FIA abriu mais uma vaga e escolheu a 1Malaysia, do magnata da aviação Tony Fernandes (a Lotus verde), e com a saída de última hora da Toyota, a FIA ainda inscreveu a Sauber, salva de última hora pelo seu fundador Peter Sauber que conseguiu pegar o que restou da parceria com a BMW. A equipe suíça tinha ficado da primeira lista porque a BMW não a inscreveu para 2010, quando anunciou sua saída da F1.
 A promessa era que a F1 adotaria um teto orçamentário em 2010, o que permitiria essas pequenas escolhidas a serem competitivas, mesmo com o orçamento limitado. Além disso, Mosley trouxe a Cosworth de volta para fornecer motores para as novatas por uma pechincha. Balela. O teto orçamentário só viria a ser implementado 11 anos depois e o motor Cosworth era um lixo, quase 1 segundo mais lento que as concorrentes. Vou resumir brevemente a origem de cada uma:
  • USF1 – Idealizada por um engenheiro e um jornalista odiado por todos no paddock, tinha o co-fundador do YouTube e a Haas (sim, a mesma que está no grid hoje) como financiadores. Porém com a grana escassa e as duas únicas coisas (literalmente) que a equipe tinha como espólio era um bico e um canal no YouTube, que por sinal está no ar até hoje. No fim, todo mundo caiu fora, decretaram falência e a FIA baniu a USF1 do automobilismo. Mais um fiasco digno de Indianapolis 2005 pra conta dos EUA.
    Um dos maiores fiascos da história. 
  • Campos GP – O ex-piloto fracassado Adrián Campos todo ano fala que entrará na F1 e sempre falha miseravelmente. A primeira tentativa foi com a Bravo F1 em 1993 que não foi nem aprovado no crash-test, tentou no início dos anos 2000, 2010, 2011 e agora em 2019. Tradicional nas categorias de base, a Campos costurou um acordo com a Dallara para fornecer seus chassis, e provavelmente foi esse o único motivo para terem passado na seletiva. Porém esqueceram de ver quem ia pagar pelos chassis, e a Dallara encerrou o acordo. Tentaram uma fusão com a USF1 que melou, e assim como a equipe norte-americana, faliu antes mesmo da temporada iniciar e foi salva de última hora pelo acionista José Ramon Carabante, renomeando a equipe para Hispania (ou HRT). A primeira corrida do ano chegou e a equipe não tinha sequer testado o carro. Montou o carro poucos minutos antes do início da 1ª sessão de treinos livres. Mesmo sendo 10s mais lento que os demais, o F110 até tinha potencial, mas sem dinheiro, o time nada pode fazer. O perrengue financeiro chegava ao ponto de terem que correr com a mesma asa traseira no GP de Mônaco (quando os carros são configurados para o máximo de arrasto possível) e no GP da Itália (menos arrasto possível). Sobreviveu por três temporadas.
  • Qué fue de HRT F1 Team?
    O crash-test e a regra dos 107% era o maior rival da HRT na F1.

  • Manor – Ninguém entendeu sua escolha. Como uma simples equipe da F3 Britânica ia ter dinheiro para correr na categoria máxima do automobilismo? Porém foi comprada pelo bilionário Richard Branson, dono do Virgin Group e renomeou a equipe para Virgin Racing. A tentativa era ser uma equipe descolada igual a Red Bull. Mesmo com todo o dinheiro do mundo, a ideia de Branson era mostrar ao mundo como era possível ser uma equipe competitiva com um baixíssimo orçamento de US$ 45 milhões e sem túnel de vento, desenvolvendo o carro através de computação gráfica. Comprovou como isso era possível terminando em último no mundial de construtores. Branson logo cansou dessa brincadeira de ter um time de F1 e caiu fora, e a equipe trocou de donos várias vezes e terminando as temporadas sem mal saber se continuaria para o ano que vem. Em 2015, com a falência da Marussia, a equipe foi devolvida aos mesmos que os inscreveram em 2010, a Manor, porém faliram no final do ano. Das novatas, foi a quem mais resistiu.
    Virgin VR-01 - Wikipedia
    Das novatas, foi a única que conseguiu pontuar

  • 1Malaysia – Assim como a Force India, outra equipe vinda de um país emergente asiático. Era quase uma equipe estatal, com forte apoio do governo da Malásia e chefiada por Tony Fernandes, dono da Air Asia. Assim como a Virgin, tinha dinheiro de sobra e Tony queria bater uma aposta feita pelo seu amigo Richard Branson, dono da Virgin Racing. Coisa de bilionário que não tem mais onde gastar dinheiro. Conseguiu um acordo com a Lotus Cars, de propriedade malaia, para correr com o nome ‘’Lotus’’ em 2010, porém a licença não foi renovada em 2011 porque a Lotus Cars adquiriu a Renault e passaria a ter sua equipe própria na F1. Tony não deixou barato e comprou o nome ‘’Team Lotus’’, que pertencia ao irmão de James Hunt e ai que teve aquela bizarrice de termos duas equipes chamada Lotus no grid. Não vou enrolar muito nessa confusão, mas a disputa pelo uso do nome ‘’Lotus’’ foi pro tribunal, e no fim Tony decidiu rebatizar sua equipe para Caterham (também fundada por Colin Chapman). Mesmo tendo o projeto mais sólido entre as três novatas, não conseguia sair do fundo do grid. Devido a falta de resultados, Fernandes deu uma de Francesco Schettino e pulou da barca, deixando sua equipe para afundar sozinha. À deriva, trocou de donos várias vezes nos seus últimos meses de vida, entrou em recuperação judicial e precisou fazer uma vaquinha na internet para poder competir nas últimas corridas de 2014. E fechou as portas, para a minha tristeza.
    Lotus T127 - Wikipedia
    Uma das melhores pinturas já feitas na F1.

  Além dessas teve a bizarrice da Stefan GP que não chegou a correr de fato, mas é uma história curiosa. A equipe balcânica ficou de fora das escolhidas pela FIA, porém os piratas sérvios compraram o chassi que estava sendo desenvolvido pela falida Toyota para a temporada de 2010. Assinaram com Kazuki Nakajima e Jacques Villeneuve e chegaram a marcar testes mas esqueceram que não tinham pneus para tal. Cogitaram uma fusão com a USF1 e a Campos, mas não rolou. Mesmo diante do ''não'' da FIA, Stefanovic pegou dois conteiners e enviou para Sakhir, porém foram barrados na porta do paddock, pois não tinham inscrição para correr. Mas tinha um motivo por trás: a Ferrari. Como os sérvios tinham Nigel Stepney (um dos pivôs do Spygate) como um de seus projetistas, a Scuderia vetou sua participação. História digna de Andrea Moda, mas pelo menos tinham um carro, diferente da USF1... Ainda tentaram entrar em 2011, 2014 e 2016 como Forza Rossa e já estão tentando se candidatar para 2022.

TF110 — O carro com o qual a Toyota competiria em 2010 (fotos ...
O modelo desenvolvido pela Toyota para 2010 nunca utilizado.

  O que se aprende é que atualmente é impossível uma equipe independente sobreviver na F1. Das quatro que entraram em 2010, todas faliram. Duas antes mesmo da primeira corrida do ano, e das três sobreviventes, todas tiveram que trocar de donos várias vezes para sobreviver, com duas delas trocando antes mesmo de estrear. A chegada dos V6 híbridos piorou ainda mais a situação de equipes independentes. Para se ter ideia, em 2014, primeiro ano dos atuais motores, das 11 equipes, 6 estavam à beira da falência: Lotus, Force India, Sauber e Williams, além das já citadas Manor (na época Marussia) e Caterham. Todas independentes e nenhuma delas apoiada por um Gene Haas ou Lawrence Stroll da vida.
    A crise na Williams, por exemplo, não é novidade para ninguém. Em 2008 tiveram um prejuízo de US$ 98 milhões e de 2010 para 2011 perdeu nada menos que 80% de seus patrocinadores. Só não faliram por causa de Maldonado e seus petrobolívares, que deu mais alguns anos de respiro para a equipe. A BAR em seus primeiros cinco anos de existência perdeu US$ 500 milhões. A Haas em seu ano de estreia na F1 gastou mais de US$ 150 milhões e não ganhou absolutamente nada, só está viva porque Gene Haas é bilionário. Quando há lucros, é sempre algo mínimo. A Toro Rosso em 2008 conseguiu terminar o ano no azul com US$ 720 mil, lucro irrelevante para uma categoria com custos milionários. Como dizia Giancarlo Minardi ‘’Isso aqui é paixão, não há lucro’’.
  Para se ter ideia, a HRT tinha um orçamento de US$ 54 milhões em 2010. A Benetton, com um orçamento US$ 20 milhões menor em 1994 (valores corrigidos) conseguiu ser bicampeã com Michael Schumacher. Em uma época que os testes e as horas no túnel de vento eram ilimitados, tinha a regra do carro reserva e do reabastecimento, ou seja, regras que teoricamente deixavam a categoria mais cara e ainda sim conseguia ter dois contratos com pilotos de alto nível. Hoje, mesmo com tantas regras que limitam custos seria impossível uma equipe com um orçamento igual ao da Benetton brigar por alguma coisa. Em 2019, a Williams era a equipe com o menor orçamento do grid, algo em torno de US$ 100 milhões - US$ 75 milhões a mais do que a Benetton gastava em 94 - e só marcou 1 ponto. 
  E ai que está o problema: mesmo com a chegada do teto orçamentário, pouca coisa irá mudar. O objetivo do teto orçamentário não é unicamente equalizar as forças, mas sim tornar a F1 em algo menos insustentável, permitir que as equipes consigam terminar o ano no azul e evitar a falência de ainda mais equipes. Mas não se enganem: há várias exceções, como os gastos com o motor, salários dos pilotos, hospedagem e estrutura. Ou seja, não será nada que fará Haas ou Alfa Romeo brigarem por vitórias.

    Dificilmente voltaremos a ver garagistas independentes ganharem campeonatos. Mas podemos ver uma categoria mais acessível tanto para jovens pilotos que nunca tiveram uma chance como Jack Aitken, Nyck de Vries, Sérgio Sette Câmara ou Luca Ghioto, quanto para engenheiros. Adrian Newey foi revelado na March, Rory Byrne na Toleman e James Allison na Larousse. Todos times pequenos. Além disso, evitaria a tão feita chantagem pelas equipes atuais quando querem alguma coisa, que ameaçam sair da categoria e deixar o grid com apenas 18 carros. No passado, vimos as tradicionais Lotus, Brabham, Tyrrel e BRM falirem e ninguém fez nada. Enquanto isso, hoje a Racing Point usa uma possível saída da F1 como chantagem para ter sua Flecha de Rosa aprovada pela FIA.

  Se você é daqueles que é contra o teto orçamentário e acha que nanicas tinham que sumir mesmo, é melhor abrir a mente. A F1 é mais do que Mercedes, Ferrari e Red Bull. Categorias como o LMP1 e a DTM colocaram o poder nas mãos das gigantes e agora estão pagando caro. As equipes independentes fazem parte da história do automobilismo e não podem ser exterminadas. Não é esporte uma categoria onde os endinheirados da 'F1 A' lutam para vencer, enquanto as equipes da 'F1 B' lutam para sobreviver.
  Termino com a declaração feita pelo mesmo Max Mosley que acabou com as garagistas anos antes:
''A Fórmula 1 não pode confiar apenas nas equipes dos fabricantes e precisa se tornar mais acessível para os independentes. Montadoras como BMW, Ford, Honda, Mercedes e Renault têm um histórico comprovado de se afastar do esporte, e equipes independentes precisam ser ajudadas''

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