O que há de errado nos autódromos atuais?

 São quase todos iguais. Retão, primeira curva fechada, S ou curvão, outro retão, depois um ponto de forte frenagem (como um cotovelo ou gancho) e pra finalizar, uma sequência de curvas de baixa, a maioria de 90°. É basicamente assim um autódromo - ou tilkódromo - desenhado por Hermann Tilke, o projetista oficial da FIA. Ah, e tudo isso acompanhado de suas intermináveis áreas de escape asfaltadas. Óbvio que nem todas seguem essa ordem, mas a essência é basicamente a mesma.


Jogo dos 7 erros: Autódromos desenhados por Hermann Tilke.
  Tilke é 8 ou 80: já fez vários circuitos interessantes, como o Istambul Park, o Circuito das Américas, Sepang e Sakhir. Também reformulou muito bem o Red Bull Ring, Hungaroring e o Hockenheimring, adicionando bons pontos de ultrapassagens. E também já errou feio em traçados como Sóchi, Yeongam e claro, Abu Dhabi, sua grande obra-prima.


  Criticado por todos, às vezes sinto até pena de Tilke. O pobre engenheiro é sempre considerado o grande culpado quando temos alguma corrida ruim em algum autódromo de sua autoria. Não há como negar, alguns layouts de pistas desenhadas por ele são sem graça, difíceis para ultrapassar e outros são apenas réplicas de outros circuitos desenhado pelo mesmo. Mas o infeliz é o que menos tem culpa nisso. O arquiteto alemão apenas segue as ordens feitas pela FIA, que tem um código rigoroso para a construções de novos autódromos super exigente e que prioriza (até demais) a segurança. 

  Vou resumir o que a FIA pede para evitar em novos circuitos: curvas de alta velocidade, mudanças bruscas de relevo, sequência de curvas velozes, variação na largura da pista e percurso muito longo, além de exigir muitas, mas muitas áreas de escape asfaltadas. Ou seja, circuitos como Spa-Francorchamps, Suzuka, Monza e Mônaco só estão no calendário até hoje por tradição.
  
  Acredito que o principal problema de Tilke nem seja a falta de pontos de ultrapassagens em si, mas sim a falta de personalidade de seus circuitos. Vamos pegar como exemplo o novíssimo Circuito de Hanói, desenhado especialmente para gerar ultrapassagens. Compare na imagem ao lado (ou acima, se estiver com um smartphone) a curva 1 de Sepang, Xangai e Hanói. Em seguida repare no retão que termina em um gancho de forte frenagem. E as sequências de curvas cegas de alta velocidade. Parece o mesmo circuito, não parece? Outros traçados como Yeongam e Budhh, Sóchi e Abu Dhabi e até mesmo pistas com propostas totalmente diferentes como o Istambul Park e o Circuito Urbano de Valência são outros exemplos. Todas parecem compartilhar de trechos parecidos ou copiados descaradamente. Falta carisma. E por isso pistas como Suzuka, Silverstone, Monza, Hungaroring, Interlagos e Spa-Francorchamps são tão queridas pelos fãs. São pistas desafiadoras, com suas dificuldades, características únicas e suas curvas memoráveis. Não têm aquela artificialidade que vemos nos tilkódromos.

A sugestão de Paulo de Tarso para a curva do café | ENTRELACE por ...
Tentativa de estupro a
Curva do Café em 2011.
  O motivo para tanta limitação nos traçados vem desde 1994. Desde então, a FIA vem modificando diversas curvas de alta, como a 130R, mutilada em 2002. Recentemente, Abbey e Peraltada também foram modificadas e quase destruíram a Curva do Café em 2011 após uma tentativa de transforma-la em uma curva de 95°. Sobre a Tamburello, vale lembrar que a curva foi quem menos teve culpa na morte de Senna, mas sim a curta área de escape que terminava em um muro de concreto. Como naquela época ainda não havia a tecnologia do softwall e não tinha como ampliar a área de escape devido a presença de um rio nos limites do circuito, de fato a única opção era transformar a Tamburello em uma chicane.

  Outra exigência da FIA que caga com os circuitos são as áreas de escape. Antigamente, se um piloto abusasse dos limites da pista, ou era fim de corrida ou destruía seus pneus. Isso mudou em 2001, em Albert Park, quando Schumacher foi jogado pro ar pela brita após uma simples rodada nos treinos livres, resultando em um acidente cinematográfico. Desde então, a brita passou a ser substituída por um asfalto mais aderente que facilita o piloto a manter o controle do carro. No início apenas curvas de alta eram asfaltadas, porém depois todos os trechos foram asfaltados, até mesmo inofensivas curvas de baixa. Os autódromos mais recentes, como Abu Dhabi, Austin e Sóchi nem possuem brita mais. Excedeu os limites da pista? No máximo é punido com 5s. Sem graça, né?

Michael Schumacher, Ferrari, Melbourne 2001 | Automobilismo


  Já pensou quantos momentos memoráveis seriam jogados no lixo se não fosse a brita? Quem lembra quando Hamilton perdeu o campeonato em 2007 por ficar atolado na brita em Xangai? Pois é, hoje isso não seria mais possível, visto que aquela área foi asfaltada. E quando Vettel perdeu aquela corrida ganha em Hockenheim em 2018 após errar e bater? Se aquela área fosse asfaltada, o tetracampeão teria simplesmente engatado a ré e ido para os boxes. E Schumacher que perdeu o campeonato em 97 ao ficar atolado em uma tentativa de jogar Jacques Villeneuve para fora da pista? Nada disso teria acontecido.
CHINA, RAIKKONEN E A SORTE DE CAMPEÃO
Erro de Lewis Hamilton que lhe custou o campeonato em 2007 não teria
acontecido hoje, pois a área foi asfaltada em 2017. 
  Paul Ricard é talvez o melhor exemplo de o que é ser uma pista artificial. Totalmente aberto e com uma área de escape feita de tungstênio para facilitar a volta do piloto ao traçado caso ele saia da pista, é praticamente impossível alguém causar um acidente nesse circuito. Além disso a pista não tem nenhuma mudança de relevo, o asfalto é um tapete, sem nenhuma irregularidade e a pista tem um sistema que aquece o asfalto para a temperatura ideal dos pneus. A pista foi transformada em um ''testodromo'' por Bernie Ecclestone nos anos 90, se limitando apenas a testes privados, por isso tanta artificialidade. Porém entrou no calendário em 2018 porque o prefeito de Le Castellet é apaixonado por F1. Não a toa, o GP da França de 2019 conseguiu superar o que eu pensei ser insuperável GP da Rússia de 2017 e se tornar na pior corrida que eu já vi em toda minha vida.

El proyecto sostenible del Circuito Paul Ricard se encuentra al 95 ...
Paul Ricard é talvez o circuito mais seguro do mundo. Mas também um dos piores que já passaram pela F1.
  Pra piorar, o diretor de provas da F1 anunciou que quer fazer as áreas de escape de Paul Ricard em todos os circuitos do calendário. O pedido teria partido dos próprios pilotos. Segundo Bottas ''Áreas de escape asfaltadas facilitam a ultrapassagem porque fazem com que os pilotos tenham menos medo de se arriscar''. Acho que essa declaração diz bastante sobre seu estilo na pista. Deve ser por isso que ele fica voltas preso atrás de um carro mais lento sem conseguir a ultrapassagem. Honestamente, se isso realmente acontecer, eu paro de assistir F1.

  Eu posso estar sendo extremamente negligente. Pode ser que de fato as britas sejam extremamente perigosas e que asfalto de tungstênio seja a única opção para manter a vida dos pilotos seguras. Pode ser que autódromos cheios de curvas de 90° sejam o futuro e que nós fãs tenhamos que nos acostumar com isso. Ou sei lá, pode ser que um traçado difícil que pode induzir os pilotos ao erro seja perigoso e que acidentes no automobilismo deveriam deixar de existir. Deve ser isso que a FIA está pensando. Não sei.

  A única coisa que tenho certeza é que a segurança nos autódromos sempre será essencial, mas isso não quer dizer que todos os circuitos construídos hoje tenham que ser todos planos, com muitas curvas de segunda marcha e sem nenhum trecho desafiador ou traiçoeiro. É possível encontrar um elo entre segurança e boas corridas. Em uma época em que os pilotos quase não erram, um circuito sem desafios não ajuda em nada a melhorar as corridas. E a partir do momento em que essa obsessão pela segurança começa a prejudicar o esporte, mostra que há algo de errado com a categoria.
  

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