Pilotos pagantes: Por que passaram a incomodar tanto?

 Desde que começamos a assistir Fórmula 1, eles sempre estavam lá. A maioria era a mesma coisa: ruim, pagava uma merreca a alguma equipe mequetrefe para participar de uma ou duas corridas e sumia. Pelo menos era assim na Era Romântica da F1, nos anos 70/80. Muitos eram só bilionários que queriam sentir o gosto de pilotar um carro de F1, outros passavam anos juntando dinheiro para enfim chegar a tão sonhada categoria e tentar chamar a atenção de alguém. Mas no geral, era sempre a mesma coisa.

MYTHBUSTER: “Ricardo Rosset é o pior brasileiro disparado entre ...
O brasileiro Ricardo Rosset era um exemplo clássico
de piloto pagante que não incomodava ninguém.
 Na maioria dos casos não incomodavam ninguém, ficavam la atrás no grid e na maioria dos casos nem completavam a corrida, seja por alguma quebra ou por algum acidente. Isso quando conseguiam se classificar.


 Mas, nos últimos anos, um tal de Lance Stroll, filho do bilionário do ramo da moda e fã da Ferrari Lawrence Stroll (nascido como Lawrence Strulovich), revolucionou o conceito de pilotos pagantes. Quando Lance chegou a Fórmula 1 em 2016, substituindo Massa na Williams. Lawrence queria mais que ver seu filho na Fórmula 1, ele queria ver seu filho campeão. E desde muito antes de Lance chegar a categoria máxima, Lawrence vem investindo não só na carreira de seu filho, mas nas equipes. Vamos fazer uma pequena lembrança de como foi a carreira de Lance:

 Lance entrou para a Ferrari Driver Academy ainda em 2011, ao lado de Sérgio Pérez e Jules Bianchi. Na época ainda tava no kart. E o guri até que era bom, nada muito fora dos níveis de um piloto de F1. Sua primeira vez em um monoposto foi um campeonato extra na Formula Abarth promovida pela Ferrari, na Flórida. Lance não fez nada demais. Um certo Max Verstappen também participou desse campeonato, ganhando duas corridas.

 No mesmo ano, Lance correu na F4 Italiana, pela equipe Prema, e foi campeão sem muitas dificuldades. Tá certo que Mattia Dudi e Andrea Russo (2° e 3° colocados) ninguém sabe quem é. Mas beleza, campeão.

VÍDEO] lambanças espetaculares e muitas corridas!
Stroll mostrando ao mundo o que sabe.
 Lawrence Stroll investiu rios de dinheiro na Prema, transformando-a numa equipe de ponta do automobilismo de base e levando sempre reclamações de outros pilotos sobre o equipamento de seu filho. Stroll ainda viria a ganhar, pela mesma equipe, a Toyota Racing Series em 2015 e no mesmo ano migrou para a Formula 3 Europeia.


 Em sua primeira temporada na F3, o canadense chamou a atenção de todos, mas por outro motivo: suas barbeiragens e incidentes nível Cirque du Soleil (ambos, curiosamente são de Montreal no Canadá). Em Monza, deu uma fechada em Antonio Giovinazzi, o mesmo da Alfa Romeo, e causou uma batida bizarra que você pode ver aqui aqui. Logo depois, na Bélgica, causou outra confusão ao fechar dois adversários na reta Kemmels. A FIA, cansada de suas palhaçadas o baniu por uma corrida.

 Para seu segundo ano na F3, Lance largou a Ferrari Academy e foi ser piloto de desenvolvimento da Williams. Lawrence também chegou perto de comprar a Sauber em 2015, mas acabou sendo comprada pelo grupo que gerencia a carreira de Marcus Ericsson, que também citarei abaixo. Dessa vez, Lance foi campeão com uma rodada de antecedência. Mas de novo chamou a atenção, mas dessa vez não pelas suas cagadas e sim por um fator extra-pista: o tratamento recebido pela Prema.

 George Russell, hoje na Williams foi um dos mais incomodados: em Paul Ricard, acusou Cassidy (companheiro de Stroll na Prema) de dar a liderança para Lance, que vinha em segundo, de forma proposital. Pouco depois, em Hungaroring, Gunther, seu outro companheiro na Prema, evitou ao máximo fazer uma ultrapassagem sobre o canadense, mesmo mais rápido. Em Zandvoort, Stroll largou em terceiro, atrás de seus dois companheiros de equipe, Gunther e Cassidy. Logo na primeira curva os dois tiraram o pé, fazendo com que Lance fizesse uma incrivel manobra por fora em um circuito sem um ponto de ultrapassagem sequer. Em Nürburgring, nada de diferente: Cassidy ficou a corrida inteira colado na traseira de Lance, sem tentar uma única ultrapassagem sequer. E na segunda corrida no mesmo circuito, Cassidy surpreendeu a todos e ultrapassou Stroll para assumir a ponta, na curva 1. Durou pouco, na volta 17, Cassidy inexplicavelmente abre a porta para Lance e, sem esboçar uma única reação, permite ao canadense retomar a liderança. Russell voltou a reclamar da postura da Prema em relação ao favorecimento a Lance: ''Não tenho o mesmo favorecimento que ele tem na equipe dele''. A irritação do britânico é compreensível: imagina ser um piloto com um talento inquestionável, mas não poder brigar de igual com os outros porque um outro piloto filho de um bilionário basicamente ''compra'' um campeonato para seu filho?
Lance Stroll: uma nova tendência no automobilismo?
 Sobre a Prema, as polêmicas não pararam por aí: na Holanda, descobriram que a suspensão de Lance estava irregular (sim, somente no carro dele), e com isso teve que largar do fim do grid. A mídia inglesa disse que a suspensão foi desenvolvida pela Williams, e curiosamente, um engenheiro da equipe foi visto nos boxes da Prema. Além disso, apenas o carro de Stroll tinha um sistema de refrigeração com gelo seco antes das corridas, fazendo com que o motor ficasse na temperatura ideal. Luca Baldisseri, engenheiro de respeito da Ferrari, deixou a Scuderia após mais de duas décadas na equipe para cuidar da carreira de Lance. Além disso, Lawrence comprou um dos melhores simuladores do mundo para seu filho (que posteriormente foi dado de presente para a Williams). Tudo para que tivesse do bom e do melhor para, quem sabe, se tornar um novo Schumacher. Além disso, Lawrence investiu pesado na Williams e contratou engenheiros de requinte para a equipe. Como se não bastasse, ainda comprou um modelo do FW36, carro da Williams em 2014, e realizou testes privados em 10 das 20 pistas que seriam realizadas em 2017, com a presença de toda a equipe da Williams e inclusive de Valtteri Bottas para instruí-lo (seu futuro companheiro de equipe, se não fosse para a Mercedes).

 O destino de Lance, todos sabem. O desempenho da Williams não correspondeu a grana investida, e vendo a Force India a beira da falência, Lawrence realizou um sonho antigo: ter sua própria equipe de F1. E o talentoso Esteban Ocon, protegido da Mercedes e melhor amigo de Lance, rodou. Hoje a Racing Point investe pesado na F1, e seu pai, não satisfeito em ter uma equipe, comprou grande parte das ações da Aston Martin e agora, rebatizará o time com o nome da montadora em 2021.

F1 Fanático: Por onde anda? Pedro Paulo Diniz, o maior 'paydriver ...
O Stroll brasileiro?
 E por que Lance Stroll virou modelo de piloto pagante na F1? Porque seu pai resolveu usar o seu dinheiro a seu favor. Não fez igual a maioria dos outros pilotos pagantes que chegavam desconhecidos por todos, ficavam uma ou duas temporadas e ninguém mais lembrava. Lance veio pra ficar.

 O Brasil já teve um piloto parecido com Lance: Pedro Paulo Diniz, filho de Abilio Diniz, dono do grupo Pão de Açúcar. Abilio investiu pesado na Forti Corse, Arrows e Sauber. Porém, Pedro Paulo não teve o mesmo investimento nas categorias de base, e  chegou a F1 como mais um pagante. Ainda sim, conseguiu resultados interessantes, a bordo de carros fracos. Em 2000 deixou a F1 e investiu na Prost GP, equipe do tetracampeão de mesmo nome.

 Outro caso parecido é o de Marcus Ericsson. Ficou vários anos na GP2 e sua melhor posição foi um sexto lugar em 2013. Seu único título é a Fórmula BMW, e em 2014 chegou a F1 pela Caterham. No ano seguinte, na Sauber, que estava em apuros financeiros, o Longbow Finance SA - grupo que cuida de sua carreira - decidiu comprar a escuderia de Hinwil, vencendo a concorrência de Lawrence Stroll, que havia tentado em 2015, quando seu filho ainda era piloto da Ferrari Driver Academy.

 Marcus tem a proeza de sempre levar um pau para seus companheiros de equipe. Em 2015, Nasr marcou o triplo de pontos que o sueco (27x9). Já para 2016, as coisas mudaram. O carro era péssimo, e agora com os gestores de Ericsson no comando da equipe, a intenção era clara: Marcus tinha que ser o piloto principal. Nasr sempre se esquivava quando era perguntado nas coletivas sobre o suposto favorecimento ao seu companheiro. Mas sua insatisfação era visível, como no GP da China de 2016.

 ''Estou 100% de que o carro tem algo de errado. Eu tenho sofrido desde o início do campeonato, mas ele (Ericsson) está feliz desde o primeiro momento. Eu pilotei o carro dele em Barcelona e me senti feliz também''
Felipe Nasr e Marcus Ericsson (Foto: Getty Images)
O favorecimento a Ericsson na Sauber era evidente.
   Além disso, a Sauber seguia com dificuldades financeiras, e quando o carro tinha alguma atualização, seja aerodinâmica, seja no chassi, nunca conseguiam trazer para os dois carros, então testavam primeiro com Nasr na sexta-feira e se o resultado fosse positivo, passavam para o carro de Ericsson. Isso é relatado pelos próprios mecânicos da equipe. No fim, Nasr salvou a equipe da falência com os 2 pontos no GP do Brasil, e segundo o mesmo, o clima nos boxes foi 'estranho', já que ninguém comemorava muito e a chefia do time nem o parabenizou/agradeceu pelo feito.

 Se você acha que eu to vitimizando Nasr só porque ele é brasileiro, então vamos pegar o caso do ano seguinte. Com a crise no Brasil em 2016, Nasr perdeu o patrocínio do Banco do Brasil e foi dispensado. A Sauber trouxe Pascal Wehrlein, protegido da Mercedes para seu lugar. E o esquema continuou. Os donos da equipe insistiam em favorecer Ericsson no duelo, e Wehrlein não dava declarações muito diferentes de Nasr quando estava na equipe. Monisha Kalterborn, chefe de equipe da Sauber, tinha um bom relacionamento com Wehrlein e isso incomodou os proprietários suecos. E, no meio do ano, Monisha, por se recusar a favorecer Ericsson, foi repentinamente demitida do comando da equipe, pegando todos de surpresa. Toda a imprensa mundial questionou o ato, e obviamente, a Sauber veio a público negar as acusações. Ericsson também negou o favorecimento
''É completamente falso e muito desrespeitoso com todo membro da Sauber. Temos pessoas aqui que trabalham dia e noite, tanto aqui quanto na fábrica, tentando fazer com que esse time tenha sucesso de novo com os dois carros e os dois pilotos''
 No fim do ano, uma parceria com a Ferrari fez com que Charles Leclerc, campeão da F2 ganhasse uma vaga no time. E quem foi mandado embora? Wehrlein, óbvio, mesmo tendo marcado todos os pontos da equipe no ano. A Ferrari também estava fazendo de tudo para colocar Giovinazzi, vice-campeão da GP2 em 2016 na vaga de Ericsson, mas obviamente os donos não deixaram. No ano seguinte, a Ferrari fez uma parceria mais forte ainda com a Sauber, passando a se chamar Alfa Romeo, porém impôs como condição ter no time Kimi Räikkönen e Antonio Giovinazzi, dois pilotos protegidos da Scuderia. Ericsson finalmente saiu do grid, mas recebeu de consolação uma vaga como terceiro piloto, na qual está até hoje. E a Longbow Finance, que ainda é proprietária da Sauber (rebatizada como Alfa Romeo), ainda tenta trazer de volta o sueco para a equipe. E ah, ao lado de Leclerc, Ericsson tomou outro cacete de seu companheiro de equipe. No fim, Marcus conseguiu estragar com as promissoras carreiras de Nasr, e principalmente Pascal Wehrlein, que por muito pouco não correu na Mercedes em 2017.

Pérez: “as pessoas me confundem com Tom Cruise”
Sérgio Pérez é um dos exemplos de
pilotos pagantes talentosos.
 Algo parecido acontece com o Latifi, que, inspirado em seu compatriota Stroll, é outro filhinho de papai que virou acionista da Williams. Nicholas ficou quase SETE temporadas na F2 tentando a superlicença, só esperando a vaga na F1 chegar. E tem muito mais pilotos endinheirados chegando por ai: Sean Gelael, Nikita Mazepin e Roy Nissani. Também tem outros que, apesar do dinheiro, são talentosos, como Robert Shwartzman, campeão da F3 em 2019 e, o caso mais notório, Sérgio Pérez, apoiado por Carlos Slim, um dos homens mais ricos do planeta. A nova superlicença da FIA foi quem nos salvou de vermos Gelael já na F1. Mas ao longo dos anos 90 e inicio dos 2000, já tivemos pilotos muitos piores na categoria máxima do automobilismo, muito piores que Stroll, Latifi e Ericsson.

 O problema é o tamanho do grid: com apenas 10 equipes, é muita pouca vaga pra muitos pilotos. Então, com a concorrência maior, muitos pilotos talentosos acabam perdendo sua vaga na F1 devido a pilotos de talento questionável, porém trazendo um considerável aporte financeiro consigo. E assim, os pilotos que chegaram a categoria máxima do automobilismo pelo talento, mas sem apoio, acabam tendo que se contentar com a Formula E, ou outros campeonatos do tipo. Vou só citar alguns casos: além de Wehrlein, que mesmo marcando todos os pontos da Sauber em 2017, foi dispensado para manter Ericsson na equipe, Kamui Kobayashi, um dos maiores injustiçados da história da F1 também ficou sem vaga em 2013 após a própria Sauber (sempre ela) dispensá-lo para contratar Esteban Gutiérrez, que assim como Pérez, era apoiado pelo bilionário Carlos Slim. A diferença é que Gutiérrez não tinha talento algum e foi um dos piores pilotos que passaram pela F1 nos últimos anos. Teve o caso de Lance Stroll, que comprou a Force India em 2018 e mandou pra rua o talentoso Esteban Ocon, também protegido da Mercedes. Nick Heidfeld, que vinha fazendo uma excelente temporada na Lotus Renault em 2011 foi dispensado no meio do ano para a contratação de Bruno Senna, que era apoiado por Eike Batista. O mesmo Senna ''aposentou'' Rubens Barrichello da F1 ao substituí-lo na Williams, com sua grana. Além de Nico Hülkenberg, campeão da GP2 no ano anterior e que foi dispensado da Williams em 2010 para a contratação de Pastor Maldonado e seus petrobolívares vindo de Hugo Chávez e da PDVSA.
Maldonado leva Williams e Venezuela a vitória histórica no GP da ...
Apesar de incrivelmente veloz, Maldonado era uma máquina de fazer merda.
 Mas então, aonde chegamos com isso tudo? Simples. Se o cara chega na F1 com uma graninha, mas mostra algum talento, como foi o caso de Sérgio Pérez, Valtteri Bottas, Robert Kubica e até mesmo Pastor Maldonado, que conquistou uma vitória surpreendente na Espanha, ninguém vê muito problema. Mas quando tiram um Ocon, um Wehrlein, um Heidfeld, um Kobayashi ou um Rubens Barrichello pra colocar/manter alguém como um Stroll, um Ericsson, um Gutiérrez ou um Bruno Senna, mostra que tem algo de errado com a categoria.
Sean Gelael, Nikita Mazepin, Roy Nissani e Nicholas Latifi; quatro exemplos de pilotos com muito dinheiro
que pularam etapas e ficaram (ou ainda estão) presos na Fórmula 2.
 E por isso ninguém se incomodava com a presença dos pay drivers nos anos 90. Eram 34 vagas no grid, raramente um piloto bom ficava sem vaga, então, tinha espaço para todos. Hoje não tem mais. As equipes precisam escolher entre dinheiro ou talento. E com a crise do Covid agora, muitas estão mal das pernas, o que abre caminho para a chegada de mais filhos de bilionários no esporte. Se tivessemos hoje esse mesmo número de carros no grid, ninguém se incomodaria em ver Nikita Mazepin, Roy Nissani, Sean Gelael ou  Philo Paz Armand na F1. Ou se tivessemos nanicas no grid. Afinal, a não ser que o piloto coloque os outros em risco, como no caso de Alex Yoong ou Yuji Ide, ninguém se importaria em vê-los em uma Minardi, ou uma Super Aguri, ou uma HRT. Alguém se sentia incomodado em ver Narain Karthikeyan na Hispania em 2012? Ou Max Chilton na Marussia em 2013? Quando não mexem com ninguém, não há problema.

 Mas com a revolução no conceito de pilotos pagantes feita por Lance Stroll em 2017, agora eles não querem mais chegar na F1 apenas fazendo número. Eles querem chegar pra competir com os grandes. Stroll, Latifi, e muitos outros que ainda não chegaram lá, mas vão chegar, como Gelael e Mazepin, vieram pra ficar. E eu só espero não estar mais aqui quando isso acontecer. 

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